São Paulo, Brasil

Invisível

Estava cada dia mais difícil acreditar em bondade naqueles tempos. Já virara quase um ritual fechar os olhos e pensar em um mundo que não existia, tecido em fios de sonhos e colorido em tons de fantasia.

Depois de algum tempo se tornara imprescindível recorrer a um refúgio em sua mente para não sucumbir às mazelas de quem, aos olhos da sociedade, possuía uma existência inconveniente e sem propósito.

Era também um passatempo observar as pessoas em suas diversas rotinas, todas apressadas, mal-humoradas e, em sua maioria, indiferentes. As cabeças voltadas para seus celulares, olhos vidrados como zumbis. Até que um dia, sem mais nem menos, tudo mudou.

Ela estranhou o amanhecer mais vazio do que o normal para uma segunda-feira em pleno centro da cidade, onde tudo costumava acontecer. Menos pessoas desceram dos ônibus e das estações de trem e metrô. Lojas e escritórios permaneceram fechados.

Já havia notado uma movimentação estranha por aquelas bandas. A primeira pessoa que vira de máscara foi seguida por seu grupo em tom de deboche, até que mais e mais pessoas foram aparecendo mascaradas.

Evitavam umas às outras, assim como normalmente, elas a evitavam. Assim como eles fingiam não vê-la, ela fingia que não se importava. E todos seguiam sua vida, num ir e vir vertiginoso. Aquele era o normal.

– Estão dizendo que é uma doença nova, importada dos exterior – disse o velho que costumava se abrigar na banca de jornal, quase em frente à Catedral da Sé.

Alguém lhe dissera que ele era maluco, mas sabia que todos, inclusive ela, eram considerados loucos, alguns em maior ou menor grau. Afinal, quem em sã consciência escolheria aquele destino. Mas ninguém sabia da sua história. Ninguém sabia do que ela estava fugindo ao escolher telhados alheios para temporariamente chamar de seu.

– Dizem que está no ar – o homem continuou em tom sábio. Olhando em volta como se algo terrível e invisível fosse emergir dos bueiros e pular sobre eles a qualquer momento.

Aquilo explicava as máscaras, ela pensou farejando o ar e ignorando o fedor que vinha do lixo, dos escapamentos dos carros e que vinha de si mesma.

Certo dia ela se mirou na vidraça de uma loja, a pele cor de azeviche ainda era lustrosa, os olhos, embora carregados de tristeza, ainda tinham um certo brilho, mas os dentes estavam arruinados, amarelos da cor do milho maduro e os cabelos estavam raspados, porque era mais seguro assim.

Ela ajeitou o velho cobertor sobre os ombros, como quem ajeita um manto real. O manto de seus antepassados, tão distantes como a terra que um dia deixou para trás. Com um tecido gasto e encardido improvisou para si uma proteção que cobrisse o nariz e a boca. Seus amigos riram dela.

Contudo, quando a primeira pessoa do seu grupo sucumbiu à doença, ela sabia que era só uma questão de tempo para que as coisas piorassem de vez.

O primeiro sintoma se manifestou com uma tosse seca que fazia seu peito arder ao roubar o ar de seus pulmões. Ela já ficara doente antes, porém com menos frequência que se esperaria para alguém vivendo em situação tão precária.

De alguma forma sabia que aquilo era diferente. Então tratou de se afastar de seus companheiros, pois não queria contaminá-los. Se tivesse sorte, seria como o sujeito que também pegara a doença, mas se recuperara em pouco tempo.

Dois ou três dias se passaram – não sabia precisar – mas os sintomas não estavam melhorando, então ela se viu procurando um serviço de saúde. Desmaiou antes mesmo de conseguir pedir ajuda.

Ao retomar a consciência se viu deitada em uma maca em um longo corredor. Médicos e enfermeiros passavam apressados, checando outras tantas pessoas que estavam em situação igual ou pior do que a sua.

– Não consigo mais receber ninguém – disse a médica a poucos passos de distância dela. O tom era urgente, quase desesperado. – Vocês não estão vendo que estamos colapsando?

Alguém explicou que a mulher que acabaram de trazer era alguma personalidade importante.

A médica quase riu de exasperação.

 – Aqui no meu plantão todos são importantes, colega. Independentemente de quem sejam fora daqui – olhou com dureza para o paramédico que por sua vez deu de ombros como quem fala “só estou cumprindo ordens”.

Após um suspiro cansado que externava as quase doze horas de trabalho, a médica chefe deu ordens para quem recebessem a mulher, mas deixou claro que ela teria que ficar ali no corredor, pois não haviam vagas na UTI, muito menos nas enfermarias.

Deitada em sua própria maca, ela viu quando os enfermeiros posicionaram a nova mulher ao seu lado e depois foram atender a outro chamado.

A mulher respirava fracamente, parecendo frágil e pequena. Imaginou se ela também teria aquela aparência. Havia uma pulseira no pulso em que identificaram a mulher como Ana. Aquele também era o seu nome, pensou, embora a sua pulseira não tivesse nenhuma identificação. Outrora, também a chamavam de Ana.

Ficou observando a outra, numa tentativa de ignorar o caos que se desenrolava ao seu lado, até que viu a mulher abrir os olhos fracamente. Os olhos vaguearam pelo corredor e depois se fixaram nela. Havia desespero naquele olhar, mas também havia reconhecimento.

Há muito Ana sabia que não a olhavam daquela forma. Há muito que não a enxergavam sequer com um ser humano. Viver nas ruas implicava, muitas vezes, abdicar de se sentir parte da sociedade.

Com um leve aceno de cabeça ela quis transmitir para a outra uma mensagem de apoio. Porque, no fim, elas eram iguais e estava muito difícil encontrar coisas boas naqueles tempos.